terça-feira, 10 de abril de 2012

o outro lado da moeda


 A trapeira do job

Houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da
infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da
idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do
primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.

Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o
sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe
restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o
colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa
usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que
ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho
de ver a Deus e à sua Joana".

E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos
Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na
Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana
pode arrasar.
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o
País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.

Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como
filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil
e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham.
Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem
no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da
sua potência genital.

Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no
condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas
instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas,
assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de
status como a língua nos cães para a sua raça.
Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de
Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave.

Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego
futuro ou com futuro.
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos
parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à
cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes
custara a cavar e às vezes nem obrigado.

O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o
operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os
víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras
bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na
idiotização que a TV tornou negócio.
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo
subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os
intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito
de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha
que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os
cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal.
Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no
barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a
dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e
mais uma trinitária pomba.

Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a
servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia
portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de
pexibeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas
chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia
e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia
quinze os táxis não tinham mãos a medir.
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão
alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista
absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais,
claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao
lado do povo, e já leu o New Yorker?
A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo,
do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o
morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo
quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe
devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse
capital rende.
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os
Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde
que tenha e já, ao cartão, ao descoberto autorizado.
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo
futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para
aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendemo-nos ao
dinheiro, enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O
Inferno começava na terra.
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do
fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder,
querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito
servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à
noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbecilidades e
telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é
nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como
tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite
e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de
pensarem, pensando por nós.
Estamos nisto.
Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa
altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se
tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha
ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande
parte de nós.

José António Barreiros

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